quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Texto - A insônia do escritor

A insônia do escritor

Estou sozinho. São duas e cinquenta e quarto da manhã, assim me informa o despertador sobre o criado-mudo. Meu corpo deitado na velha cama descansa de um dia exaustivo. O sono distancia-se cada vez mais. Não consigo fechar os olhos; os pensamentos são vazios e não entendo essa situação. Os cães estão uivando lá fora. Os gatos vadiam sobre o telhado, acasalando-se desesperados. A velha camisa, suada, está pendurada atrás da porta. A janela, entreaberta, deixa o vento fresco, que suavemente balança as copas das árvores. Meus lábios estão ressecados. A língua colada no céu da boca. Vou levantar-me. A cama já não me atrela como há duas horas quando, depois da noite anterior em claro, vim a deitar-me pela primeira vez. O chão está frio. O corpo arrepia-se. Procuro meu chinelo; não o encontro. Não estou plenamente recuperado; o cansaço e a fadiga estão presentes em meus músculos e mente. Depois de alguns passos, chego à porta do quarto. Tateio à procura do interruptor. Encontrei. A lâmpada acende e rasga meus olhos com uma intensa claridade. Faço isso por duas vezes antes de chegar à cozinha. Percebo que o ambiente não está apropriado para receber visitas – roupas espalhadas, livros e papéis por todos os lados, restos de comida sobre a mesinha da sala e muitas garrafas vazias. Minha barba e cabelo estão compridos. Abro a geladeira. Tenho poucas opções, há tempos não vou ao supermercado. Água em abundância, algumas folhas, que de tão velhas, estão murchas, um pouco de queijo, uma panela com arroz da semana passada e uma conserva de palmito. Não há sólido interessante para colocar no estômago, então bebo um copo com água. Continuo a procurar algo para comer. A insônia persiste. Abrindo os armários deparo-me com muitas latas, dos mais variados tipos de alimento – ervilha, milho, doce, palmito, cogumelos, cenoura, beterraba, etc. – tudo em conserva! Não recordo o dia em que foram parar ali. Porém, além das conservas, há garrafas - e não são poucas. A sede ainda é intensa, não mais por água; é uma sede diferente. Então, abrindo qualquer uma dos recipientes contendo exclusivamente líquido, passo a apaziguar essa sede. O gargalo é meu copo. O relógio marca quatro e dezessete da manhã. A garrafa, já meio vazia, repousa sobre o chão frio e sujo da cozinha. Estou sentado, recostado na parede. A garrafa e uma lata fria de sardinha são minhas companhias. O olhar é vago. A cozinha um dia foi um ambiente aprazível. Continuo sentado. Ouço a som da trepidação dos pneus dos carros passando sobre o calçamento em frente a minha casa. Ora passam em silêncio, ora buzinam para os cachorros. Mais uma vez viro a garrafa. O odor da sardinha empesteia a cozinha. Minhas narinas não diferenciam nenhum outro ativador sensorial olfativo – apenas o clássico cheiro de sardinha em lata. A garrafa está quase vazia. Os meus olhos estão ficando cada vez mais pesados. Minha língua está entorpecida e dormente. Minhas pernas não respondem; meus braços adormecidos. Meus ouvidos ficam a cada segundo mais distantes. Os lábios inquietos.  Minha mente entra num vazio profundo. Não é sono. É algo mais profundo, como uma anestesia. Os olhos não suportam o peso que viera a atormentá-los. Fecham-se. O corpo não sustenta e cai lateralmente. O silêncio é assustadoramente perturbador. São três e quarenta e dois da manhã. Apenas o som das teclas do computador pode ser ouvido nessa madrugada.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Tarde de Verão

Tarde de Verão


Hoje, uma tarde fria de uma sexta-feira pacata, caminho sossegado entre as árvores e bancos do Jardim Botânico. Há uns trinta metros, logo à frente, entre o ipê-roxo florido e a quaresmeira solitária, eu observo um casal, aparentemente namorados. Os dois parecem felizes. Ora trocam carícias, ora caem na gargalhada. Continuo a observá-los. O local está quase vazio, não é para menos – a temperatura é de 22 ºC! Um pequeno roedor para em minha frente. Alimento-o com alguns biscoitos que trouxe no bolso da jaqueta. O vento frio sopra. Voltando os olhos para o jovem casal, vejo que os dois se olham ternamente, com uma docilidade e inocência que fica difícil conter a emoção. O roedor em minha frente, mal acabara de consumir o primeiro biscoito, quando escuto o som estridente das maritacas. Lanço o segundo e último biscoito ao chão. O raquítico animal o devora abruptamente, como se pressentisse que algo ruim estivesse próximo a acontecer e corre. O frio é de aplacar, e depois de uma hora sentados, os jovens continuam abraçados e cochichando ao pé do ouvido um do outro. Não há uma alma viva, exceto roedores, pequenos répteis e anfíbios que transitam, ora freneticamente, ora lentamente. Lembro-me saudoso do calor das tardes de verão, quando há crianças correndo por todos os lados, balões coloridos, picolés gigantes, pirulitos caricatos, pipoca doce e salgada, risos alegres e algazarra; macacos-prego, saguis e guaxinins por todos os lados, tucanos exóticos e, até, raríssimas araras! Porém, hoje todos se esconderam. A temperatura é de uns 20 ºC. Continuo a observar os jovens, agora, sem nenhuma distração. Estou esperando os dois se levantarem para que eu possa seguir meu caminho. Por um instante noto que uma lágrima cai dos olhos da menina e escorre pelo seu rosto singelo e límpido. O rapaz afaga sua face, como se quisesse aliviá-la de algum tormento ou dor. Parece que conversam sobre algo importante, pois os olhos fitados não dão margem para distrações, nem mesmo para as flores que caíam do ipê-roxo. Eles entrelaçam as mãos, dando a entender que irão levantar-se. Nada. Simplesmente queriam aumentar à superfície em contato de entre ambos! A temperatura continua a diminuir. Já não consigo suportar o vento gélido no meu rosto. Estou prestes a levantar-me e partir, quando, num instante, sou tomado por um medo incontrolável e incomum que paralisa meus músculos; o tempo torna-se lento demais e já não percebo os movimentos rápidos das copas dançando ao sabor do vento; as folhas caídas ao chão, varridas pela brisa congelante. O jovem casal parece cada vez mais distante e inerte. Meu corpo não responde e o coração, na contramão, bate desesperadamente. Perco os sentidos a cada segundo que se passa se é que posso falar em segundos, já que não percebo o tempo. Os jovens ficam cada vez mais distantes dos meus olhos; as árvores distorcidas, os bancos e ladrilhos no chão misturam-se em um balé cósmico colossal. Com minhas últimas forças, fecho os olhos rapidamente. E, como o grito de um guerreiro liderando a frente de batalha, o céu emite um poderoso, estrondoso e ecoante trovão! Vou abrindo os olhos lentamente, bem devagar. Estou em meu quarto, deitado em minha cama, em plena sexta-feira, numa tarde de verão. A temperatura é 38 °C.